O rapaz chegou ao nosso encontro muito magro, quase só pele e osso. O cabelo em um corte para lá de estranho (embora possam argumentar que de cabelo eu não entenda muito). Era viciado em cocaína havia alguns anos. Conversamos.
Para minha surpresa os pais eram líderes do trabalho com famílias na igreja, reconhecidos e tidos como “modelo” pelos quase 3 mil membros da comunidade. É claro que as primeiras perguntas que me vieram à mente foram: “Como um rapaz criado em um lar assim pode enveredar-se por um caminho tão autodestrutivo? Culpar o Diabo? A falta de ensino mais sólido na igreja? As más companhias?”.
Lembrei-me de um autor de terapia familiar que afirma: “Todos os sintomas nas crianças estabilizam casamentos instáveis; quanto maior a magnitude do conflito conjugal, maior será a magnitude do sintoma; quanto mais encoberto ou escondido o conflito conjugal, mais necessário será o sintoma para estabilizar o conflito”.1
Resolvi convidar toda a família para a terapia. E, em meio ao processo, uma revelação dolorosa: o pai “exemplar” mantinha secretamente um caso que iniciara exatamente um ano antes de o rapaz nascer. Embora o assunto jamais tivesse sido revelado, o filho “sabia” que havia “algo” errado no relacionamento dos pais. Na verdade, ele era o “sintoma” da disfunção familiar.
A vivência de uma espiritualidade dissociada de uma vivência cotidiana é geradora de muitas doenças em nossas comunidades de fé e em nossas famílias. Quando os filhos veem que os pais, de modo especial aqueles que têm postos de destaque e liderança na comunidade, não são coerentes entre o que discursam aos outros e o que praticam dentro de quatro paredes, estes filhos encontram formas de “denunciar” essa dissociação por meio de sintomas — em geral graves. Os filhos “absorvem pela pele” que algo está errado e o sintoma é um pedido de socorro autossacrificial.
Crianças e adolescentes com alta agressividade, desempenho escolar sofrível, extrema irritabilidade ou agitação, envolvidos em condutas autodestrutivas ou marginais etc. são indicativos de relacionamentos familiares frágeis e, ou, disfuncionais. Estas crianças e adolescentes não precisam ser medicados (literalmente envenenados) com drogas para conter ou modificar os comportamentos — precisam que a família reconheça que algo vai mal, que todos são corresponsáveis nisso e devem buscar ajuda para promover mudanças.
Algumas vezes, pequenas mudanças geram resultados fantásticos, como o simples fato de a família ter uma noite de lazer em conjunto, abrindo mão de os membros estarem todas as noites envolvidos em atividades da comunidade, para que os filhos e cônjuges sintam que são “mais” importantes que as atividades. Isso contribui para a construção da autoestima dos membros da família.
Como terminou o atendimento do rapaz citado no início? Bem, ele abandonou as drogas, mas o pai, obtuso, negava sua cota de responsabilidade e o casamento acabou. Enfim, o filho não precisava mais apresentar o sintoma porque a “infecção que causava a febre daquele organismo familiar fora revelada”. Infelizmente, parte do organismo não quis tratamento e acabou em uma amputação.
Lembremo-nos da instrução de Paulo aos líderes: “Se alguém não sabe governar sua própria família, como poderá cuidar da igreja de Deus?” (1Tm 3.15).
Nota
- BERGMAN, Joel S. “Pescando barracudas”; a pragmática da terapia sistêmica breve. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. p. 8.
Por: Carlos “Catito” e Dagmarsão casados, ambos psicólogos e terapeutas de casais e de família. São autores Acompanhe o blog Casamento e Família.