Existe uma cantiga popular, de roda, cuja a letra é: “ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar. Vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar. O anel que tu me deste era de vidro e se quebrou, o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou.”
A sabedoria popular associou um anel de vidro que se quebrou; com o amor, que sendo pouco acabou.
Desta música, que de inocente não tem nada, chego a conclusão que problemas de amor sempre existiram e sempre existirão.
A troca das alianças é de longe o ponto alto do casamento. Momento em que o celebrante solicita que aos nubentes, um de frente para o outro, repitam, cada um na sua vez, a tradicionalíssima promessa:
“ _. Com esta aliança eu te tomo como esposa(o), prometendo, perante Deus e essas testemunhas, lhe amar, honrar, respeitar; na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença, na pobreza ou na riqueza. Em todos os momentos, até que a morte nos separe.” Lindo! Maravilhoso! Divino! Mas já ouvi dizer de um celebrante que não adota mais esse critério. Mas diz: “agora é com vocês, portanto, fiquem a vontade para falar o que quiserem.”
Sem dúvida que falar com as próprias palavras é bem diferente de repetir como um papagaio. Mas também já ouvi dizer que alguns celebrantes, levando em consideração o alto índice de divórcios, eliminaram este item da cerimônia. E agora?
Qual o sentido dessa promessa no casamento? Há quem diga que quem promete não cumpre. Será? Outros dizem que promessa é dívida. Sendo assim, existem casais que estão literalmente afogados, endividados, totalmente inadimplentes. O que fazer? Quebrar a promessa e jogar fora o anel? Essa tem sido a saída mais comum. Mas com certeza não é a única e muito menos a melhor.
Uma arqueologia do anel
A arqueologia aponta que os anéis eram usados desde a antiguidade. Eram confeccionados geralmente em ouro, mas também existiam anéis de prata e bronze. Os reis, desde a antiguidade, usavam o anel como forma de selar um compromisso. O anel era símbolo de nobreza e autoridade. Era como uma assinatura com firma reconhecida. E ai de quem desrespeitasse e violasse a marca do anel de cera sobre um documento! Hoje em dia não existe respeito para com as pessoas, quanto mais aos símbolos.
Na Bíblia existe uma história muito interessante que nos remete ao simbolismo do compromisso no casamento, está no capítulo 38 do livro de Gênesis. Tamar fica viúva de seus dois maridos: Er e Onã (daí a palavra onanismo). Judá, como rezava a tradição, diz Selá, seu filho mais novo para, casaria com Tamar.
Mas, como ele era muito novo a orientou que fosse para a casa dos seus pais e aguardasse até que Selá pudesse tomá-la como esposa.
Parece que Selá não gostou muito da idéia. Quem sabe estava com medo de ser a próxima vítima. Pois bem, nada melhor do que um dia após o outro. Passando o tempo e observando que Judá não cumpria a sua promessa, Tamar resolve dar o seu jeito. Toma conhecimento de que Judá estaria pra chegar na cidade, numa viagem de negócio. Ela, então, muito esperta, arma uma cilada para Judá – a mulher quando quer armar é terrível!
Troca suas vestes, esconde o seu rosto e fica na rua, por onde Judá passaria, como se fosse uma prostituta. Judá passa e, cansado da viagem, a assedia. Que papelão de um chefe de família! Antes de ter relações sexuais com Judá, Tamar pede um penhor, um selo, algo que pagasse pelos momentos de prazer. (v. 18). Judá oferece o cordão. Tamar estava com o rosto coberto e Judá não a reconheceu. Na relação sexual, essa tem sido a queixa de muitas mulheres, o homem quer ir logo para os finalmentes.
Pouco se importando com a cara da mulher, se ela está chorando, fazendo careta, seja lá o que for!
Passado alguns meses, chega a notícia de que Tamar estava grávida. Judá, como um bom legislador da moral e dos bons costumes, um hipócrita como muitos religiosos hoje, manda trazê-la para ser apedrejada em praça pública. Só que o que ele não esperava é que ela estava com o selo que ele, sem saber, havia deixado com ela, por ocasião da sua “viagem de negócio”. Foi o que a salvou literalmente. Não somente do apedrejamento, mas do isolamento social que uma mulher separada, naquela época, era vítima. O cordão de Judá correspondia a aliança que ele fez com Tamar. Nesse sentido ele foi correto, honrou a sua aliança.
Na idade média o anel de casamento era dado pelo noivo a noiva, como selo da promessa que o noivo fazia a noiva. O noivo, portanto, não usava anel. O que isso significa? Existia no anel um poder sobrenatural que era o de livrar a noiva dos ataques do demônio. Demônio! Que demônio? O vizinho, o primo, o colega, o dom Ruan do Bar da esquina, etc.!
Na Europa, por volta do século XV, o marido era a parte ativa e ele oferecia três anéis a noiva, dizendo: “Com este anel eu te desposo; com este outro eu te honro; e com este eu de adoto!” Que coisa linda! É o esboço de um período que estava por vir, o romantismo.
Não posso precisar quando o noivo passou a usar o anel. Mas imagino que desde que começou a usar surgiu a história de perder a aliança na pia do banheiro, do restaurante, do trabalho. Que coisa feia! Mas as vezes acontece, a pia entope e dá um maior trabalhão para desentupir! A coisa começou a ficar feia para os homens. Nesses 18 anos de vida conjugal, eu perdi a aliança uma única vez: quando estava de férias na praia.
Faço este resgate histórico, a partir de dados colhidos na “Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia”, para ressaltar que o simbolismo do anel enquanto compromisso firmado entre duas pessoas. As alianças continuam ocupando espaço de destaque nas cerimônias de casamento, mas a relação conjugal está ficando cada vez mais desvalorizada. O que está aconteceu com a promessa e o compromisso do casamento? A aliança do casamento é de ouro ou é de vidro?
II – O compromisso no casamento
Este é o cerne principal da questão o compromisso no casamento e não a aliança. O símbolo, seja ele qual for, representa algo que quando interiorizado não depende mais dele. Não se trata, portanto, de abolir ou não o uso da aliança, mas de resgatar o sentido que ela tem. A aliança enquanto símbolo só tem valor quando reforça o compromisso que um tem para com o outro, no caso, o esposo para com a esposa e vice versa.
No livro “Pequeno Príncipe”, existe um diálogo muito interessante entre o menino e uma raposa. Diz assim:
“Vamos ser amigos? Pergunta o príncipe à raposa. – Eu não posso, não me cativaste ainda! Que é cativar? – É uma coisa muito esquecida pelos homens… Significa criar laços… Tu não és para mim senão um garoto igual a cem mil outros. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens de mim. Mas se tu me cativas. Nós teremos necessidade um do outro. Seremos um para o outro únicos no mundo… – Não tenho muito tempo… – A gente só conhece bem as coisas que cativou. Os homens não têm tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me! E então ele a cativou… E voltou à raposa: Eu preciso ir… Adeus! – Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo: Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos. Foi o tempo que perdeste comigo que me fez tão importante para ti. Os homens esqueceram essa verdade… Tu te tornas eternamente responsável por tudo aquilo que cativas.”
As alianças no casamento estão se desfazendo, dentre tantos outros motivos, porque a cultura do gozar a qualquer preço tem tornado os relacionamentos cada vez mais descartáveis. A cultura do que importa é “o aqui e agora” tem banalizado os relacionamentos. Deste modo, não existe investimento, que no diálogo da raposa com o pequeno príncipe é chamado de cativar. Interessante que a raposa diz que cativar é “criar laços”. O que só se consegue com tempo, com investimento, com a disposição de se lançar na aventura de conhecer melhor o outro.
O compromisso no casamento é muito mais do que manter e sustentar uma promessa perante Deus e a sociedade. Não é viver de aparências. Há tempos atrás escrevi um artigo, a partir de uma nota que saiu na coluna do Boechat, no Jornal do Brasil, com o título de “Pecadinho”, que dizia: “em seu sermão no Convento de Santo Antônio, Frei Clemente Kesselmeier surpreendeu os fiéis. Revelou-lhes o apelo de uma mulher, deixado na véspera, por escrito, ao santo casamenteiro: “Peço, de todo coração, que este ano eu fique viúva”, dizia o bilhete” (grifo nosso).
“Quem fez o pedido nem o santo sabe, só Deus. Mas seria cômico se não fosse trágico. (…) O pedido dessa mulher, quem sabe um grito de socorro, pode muito bem representar a situação de muitos casamentos esfacelados, infelizes, desgastados, de nossa sociedade ainda tão hipócrita. Será que existe isso na igreja? Talvez. Quem sabe! Acho que sim!”
O compromisso no casamento, voltando ao diálogo da raposa com o pequeno príncipe é uma ação no sentido de cativar o cônjuge. Sem dúvida que com o passar do tempo essa ação torna-se vai ficando um pouco mais desgastada. Mas, parafraseando o poeta, “cativar é preciso”. Compromisso, portanto, enquanto algo que se renova a cada dia sem descansar numa promessa feita no passado. Até porque, da conta que só se saca, sem depositar; acaba ficando no vermelho, estourando todos os limites e, por conseqüência fechando.
É neste sentido que falo do compromisso no casamento como algo que tem que ser buscado, cultivado e não como obrigação da lei: prometeu tem que cumprir. Como diz a Bíblia: “a letra mata, mas o espírito vivifica.” (2 Cor. 3:6). Ouço alguns discursos sobre o casamento que ao invés de incentivar deprime mais ainda. É o discurso da letra onde o que ressaltado é necessidade do casal ficar casado, não interessa como. Compromisso enquanto sinal de leveza e não de obrigação. É para permanecer casados, mas buscando sempre a qualidade, o aprimoramento, a renovação do amor confessado publicamente no altar.
Conclusão:
Comecei com citando uma cantiga popular, termino com um poema de Manuel Bandeira que diz:
“O anel de vidro
Aquele pequenino anel que tu me deste,
Ai de mim – era vidro e logo se quebrou…
Assim também o eterno amor que prometeste,
Eterno! Era bem pouco e cedo se acabou.
Frágil penhor que foi do amor que me tiveste,
Símbolo da afeição que o tempo aniquilou,
Aquele pequenino anel que tu me deste,
Ai de mim – era vidro e logo se quebrou…
Não me turbou, porém, o despeito que investe
Gritando maldições contra aquilo que amou.
De ti conservo no peito a saudade celeste…
Como também guardei o pó que me ficou
Daquele pequenino anel que tu me deste…” Pra que guardar o pó da mágoa, do rancor, da desilusão, se podemos conservar o anel, como símbolo do nosso compromisso do amor?
Quem escreveu:
Ailton Gonçalves Desidério