“Portanto deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e unir-se-á à sua mulher, e serão os dois uma só carne.” (Gênesis 2: 24).
Quem já não ouviu uma mensagem tendo como base esse texto de Gênesis? Já estamos cansados de ouvir falar sobre esse assunto. Por que continuar batendo na mesma tecla? Em geral todos os que falam sobre assunto acabam repetindo a mesma ladainha: é preciso que o casal tenha o seu espaço para construir a sua autonomia e formar a sua identificação familiar!
Mas é preciso considerar que muitos dos que estão se casando hoje, de um modo ou de outro, continuam dependentes dos pais: ou porque não podem pagar o aluguel, ou porque ambos precisam trabalhar e não tem com quem deixar o filho, ou por conta das duas coisas juntas. Como deixar pai e mãe se eles ocupam um papel tão importante na vida do casal recém casado?
Antigamente, há uns 50 anos atrás, o pessoal casava com a cara e a coragem. Hoje em dia tem a cara, mas falta a coragem. Casamento é investimento, e como todo investimento tem bônus e ônus. Mas, a bem da verdade, é preciso considerar o fato de que a grande marca desse nosso tempo chamado de pós-moderno é anular o ônus, pra ficar só com o bônus. Possível? Doce e triste ilusão! Talvez este seja um dos motivos pelos quais muitos jovens estão desistindo do casamento.
Mas cremos que muitos jovens, e porque não dizer adultos, sonham e querem um casamento sólido, abençoado e abençoador. Para estes vale ressaltar, por mais repetitivo que seja, este antigo princípio bíblico que diz: “Portanto deixará o homem a seu pai e a sua mãe…” Muitos tomam com um princípio super fácil, mas trata-se de uma atitude muito difícil na vida do casal, tanto do homem quanto da mulher. Deixar traz a idéia de algo que é novo, desconhecido, o que causa insegurança e medo. No fundo, no fundo, mesmo já crescidos, a presença dos pais sempre dá uma sensação de segurança, amparo que todos carecemos e buscamos. Deixar pai e mãe não é uma experiência fácil.
DEIXAR DÓI
A primeira experiência de dor de uma pessoa é vivida no nascimento. Alguns teóricos afirmam que é o principal e o maior trauma da vida. Momento de ruptura com um mundo interno, onde se vivia comodamente no útero da mãe, eis que de repente surge para o mundo externo um ser totalmente indefeso, e recebe como mensagem de boas vindas uma boa palmada no bumbum. Mas mesmo após o nascimento o bebê, por alguns breves minutos, ainda permanece ligado fisicamente a mãe. Até o momento em que o obstetra corta o cordão umbilical. Tal ato é revestido de um simbolismo todo especial, pois traz a marca de uma autonomia de que deverá ser exercitada e conquistada na vida.
Mas cortar dói, e é por isso que alguns insistem em manter uma ligação umbilical com os pais, mesmo no casamento. Que tipo de dor é essa? É a dor do desamparo, acrescida do medo de ter que gerenciar os seus próprios problemas, a própria vida, sem ter papai e mamãe por perto. Mas viver, assim como navegar, já dizia o poeta, é preciso. O ato de “deixar pai e mãe” tem a ver com este ato de cortar o cordão umbilical, pela vertente do lado afetivo, psicológico e financeiro. Trata-se de um corte que precisa ser feito para o surgimento de uma nova vida, a vida de casado.
São muitos os motivos pelos quais uma pessoa mesmo estando casada conserva um vínculo muito forte com os pais. Tal atitude na maioria das vezes é inconsciente e reflete uma insegurança que pode ter sido gerada pelos próprios pais no decorrer da criação. Não é fato raro os pais agirem com tal força sobre os filhos, afim de protegê-los da vida, que estes acabam por desenvolver um forte sentimento de insegurança. Em outros casos os pais mimam tanto os filhos que eles também se tornam eternos dependentes e inseguros. Educar não é fácil é uma arte: a arte de não ocupar os extremos.
Cada um possui uma história de vida que precisa ser resignificada. Mas viver eternamente a síndrome de Gabriela – “eu nasci, eu cresci assim, vou ser sempre assim” – não contribui em nada. É preciso assumir a direção da própria vida, por mais difícil que seja. Cortar tanto quanto deixar dói, mas é preciso.
Mas é preciso considerar que “Deixar pai e mãe” não significa “abandonar pai e mãe”. Deixar é mais suave do que abandonar. Existem filhos que abandonam os pais, e pais que se o filho passar um dia sem ligar se sentem abandonados. O ato de “deixar pai e mãe” deve ser encarado como um processo natural da vida, tanto para os pais, como para o filho ou a filha.
As vezes, com o casamento de um filho ou de uma filha os pais se sentem abandonados e usam os mesmos artifícios que usavam quando os filhos eram pequenos: “Você não gosta mais da mamãe.”, “Você não gosta mais do papai.” Então o filho vinha e dava aquele abraço, beijava e dizia: “papai eu te amo!”; “mamãe, eu te amo!” Que lindo! Qual o pai ou a mãe que não gosta desse afago?! São as famosas barganhas. Elas também ainda existem, sob uma nova roupagem, na vida adulta. Mas é preciso reconhecer, tanto os pais como os filhos, que o tempo passou. Isso não significa dizer que não existe mais espaço para os afagos e carinhos, mas considerar que existe uma mudança nas relações.
Cortar o cordão umbilical por ocasião do nascimento pode até doer, mas o médico intervém e faz o que deve ser feito, sem perguntar ao recém nascido se é isso mesmo o que ele quer. Mas cortar o cordão umbilical no aspecto subjetivo, enquanto ato de deixar “pai e mãe”, exige que o sujeito queira e que assuma a responsabilidade desse ato. Deixar pai e mãe é muito mais do que deixar a casa dos pais, ou seja, é mais do que uma simples separação física. Sem dúvida que isso também é importante, mas existem casos em que mesmo casados os filhos precisam, por um certo tempo, morar com os pais. Não é a melhor coisa, mas se não tiver alternativa.
As vezes é preciso ter ajuda específica para que cortar o cordão umbilical com os pais, tendo em vista as muitas implicações psicológicas que estão em jogo num ato como este. Mas em geral é um período normal de transição e adaptação na vida do casal.
Mas por que é preciso deixar pai e mãe? Quais as implicações dessa atitude na vida do casal?
DEIXAR PARA NÃO REPETIR.
A repetição é uma tendência natural e inconsciente do psiquismo. As marcas impressas e recalcadas no inconsciente aparecem na vida pela via da repetição. Sendo assim as pessoas repetem ações e atitudes sem se aperceberem de que estão fazendo isso. Nas entrevistas que faço com os noivos – o tema da minha monografia no STBSB foi “Estudo sobre a clínica de aconselhamento pré-nupcial, como meio de fortalecimento da família” – pergunto sobre quais as expectativas que o casal tem em relação ao casamento. Em geral a resposta é que eles querem ter um casamento diferente do dos pais. Dizem, por vezes com todas as letras, que não vão repetir este ou aquele erro do casamento dos pais.
Acompanhando alguns desses casais após o casamento observo que eles estão justamente repetindo o que disseram que não iriam repetir, ou seja, os erros do casamento dos pais. A cantora Elis Regina cantava uma música cujo refrão diz: “ainda somos os mesmos e vivemos. Ainda somos os mesmos e vivemos, como nossos pais.” É verdade em muitas ocasiões ainda somos e agimos como os nossos pais. Não vai aqui nenhum juízo de valor ou crítica a educação que muitos pais se esmeraram por dar aos filhos. Mas o que como pai espero é que os meus filhos não cometam os mesmos erros que eu e minha esposa cometemos no casamento hoje. Isso nada mais é do que um processo natural de desenvolvimento. Se o casamento dos pais é bom o dos filhos precisa ser melhor. Se não foi bom, aí mesmo que precisa ser melhor. Mas em muitos casos não é isso o que acontece.
Vejo casamentos ruins, fracassados que estão repetindo os mesmos erros do casamento dos pais. Será destino, sina, maldição? Muito se fala hoje no meio evangélico de quebra de maldição. Que maldição? Do que estão falando? Infelizmente alguns pastores, líderes e outros mal intencionados estão se apropriando indevidamente de um saber específico que não possuem, e com isso estão prejudicando mais do que ajudando. Ah! Mas para algumas pessoas têm dado certo. É verdade! Os placebos também dão resultados!
Para não repetir é preciso elaborar, ou seja, é preciso dar-se conta do que está fazendo: por que estou fazendo isso? Por que estou agindo dessa maneira? Não se trata de um simples processo de autoconhecimento. Até porque esse processo de ruminação mental só serve para aumentar a dor e o sofrimento, e em geral acaba com um forte sentimento de culpa, o que bem pode ser uma repetição de um certo masoquismo. As vezes no casamento é comum que a esposa ouça do esposo, ou vice-versa, a seguinte colocação: “Você está agindo igual a sua mãe (pai)!” Aí surge aquela discussão: “e você?” Sabe porquê. Porque quem está repetindo não gosta e não quer saber que está. É como tocar numa ferida aberta. Então é preciso que esposa e esposo pensem duas ou mais vezes antes de falar tal coisa.
Poderíamos aqui incrementar ainda mais a discussão sobre a repetição dizendo que em geral escolhemos para casar substitutos dos nossos pais. É como se eu tivesse casando com o meu pai, ou casando com a minha mãe. Você está achando muito engraçado ou muito estúpido isso que estou afirmando. Mas se não consegue ver isso em você, concordo que é muito difícil, procure analisar as pessoas que estão próximas e observe se o noivo da sua amiga não possui traços da personalidade do pai dela; e se a noiva do seu amigo não possui alguns traços da personalidade da mãe dele. Repare isso em alguns casamentos, mas tome o cuidado para não dizer nada e nem deixar que eles percebam que estão sendo “filmados”. Viu? Percebeu? Isso é, a grosso modo, uma forma de repetição.
Deixar pai e mãe é a maneira de construir o casamento em bases sólidas e não sob falsas premissas. Não é porque o casamento dos seus pais foi muito bom que você pode ficar descansado e esperando que vai dar tudo certo no seu. Mas também não é porque o casamento dos seus pais não foi bom, que o seu está fadado ao fracasso. Mas lembre-se: as chances de repetir o fracasso são bem maiores do que as chances de repetir o sucesso. É preciso não ficar assustado em demasia com os problemas e as dificuldades do casamento.
Para os que acham que se o casamento não estiver dando certo é só separar, ressalto o que diz Stephen Kanitz, colunista da revista Veja, num artigo muito interessante, da edição de 14 de setembro deste ano, cujo título é: “O Segredo do Casamento”; quando diz: “O segredo do casamento não é harmonia eterna. Os arranca-rabos são inevitáveis. O segredo, no fundo, é renovar o casamento, e não procurar um novo casamento”. É um artigo muito interessante que vale a pena ler na sua íntegra.
Deixar pai e mãe é um exercício de diferenciação dos espaços objetivos e subjetivos, concretos e emocionais. Princípio bíblico, mas de extremo valor para os dias atuais. Se você está pensando em casar, leve isso em consideração, conversem sobre este tema, orem juntos e, se necessário for, não se acanhem em buscar ajuda própria e devida.